NOTA DO IAB-RJ SOBRE ARQUITETURA HOSTIL 

“Arquitetura Hostil” pode ser um termo com muitos significados, inclusive o de hostilizar quem deseja se abrigar ou ocupar temporariamente um determinado espaço construído.

A Arquitetura Hostil é comumente expressa nas formas mais simples de exclusão/afastamento, como muros, grades e cercas em propriedades privadas. Ao estar implantada no espaço público, que deveria ser um espaço aberto a todos que ali desejassem se abrigar ou ocupar temporariamente, este tipo de “intenção” arquitetônica acaba gerando no espaço público novos, e ainda mais hostis, contornos.

Como espaço público, qualquer ambiente construído nesta esfera deveria ser uma manifestação humana de apropriação plural e democrática do espaço. Ao contrário, a Arquitetura Hostil objetiva tornar qualquer elemento público, em qualquer escala – desde parques, praças, abrigos de ônibus, marquises, bancos, muretas ou mesmo canteiros – em espaços excludentes. Nessa lógica, somente o objetivo principal do aparato deve ser atingido, excluindo/afastando qualquer pessoa que tente utilizar aquele espaço de formas alternativas ou com objetivos secundários, como, por exemplo, sentar-se em uma mureta, ou tomar caminhos não planejados na cidade.

Além de fragilizar o caráter democrático do espaço público –  que tem suas regras de convivência culturalmente aceitas –  a Arquitetura Hostil tem um viés autoritário: passa a prescrever de forma monocrática que usos e funções aquele espaço pode ter, impossibilitando usos alternativos através da violência contra quem confere aos equipamentos públicos funcionalidades alternativas às projetadas. Usando o projeto e, assim, a arquitetura, como instrumentos dessa violência, a Arquitetura Hostil privilegia um sistema social e econômico que exclui determinados grupos, perpetuando a exclusão social como forma institucionalizada de resolver o problema social das cidades, principalmente das grandes cidades.   A Arquitetura Hostil ressignifica, assim, o espaço público urbano, subvertendo seu conceito original, ainda que isso signifique o cerceamento às necessidades mais básicas humanas, como o dormir de forma minimamente segura, ao abrigo de intempéries.

As classes sociais excluídas dos sistemas formais, principalmente na qualificação de pessoas em situação de rua, são, de longe, as mais atingidas pelo cerceamento destas funções “secundárias” do espaço público. Afirma-se, assim, uma lógica de dupla-exclusão, em que não basta o cidadão ser excluído de seus direitos básicos assegurados pela Constituição (como habitação, saúde, educação, alimentação, entre outros), como lhe é retirado também o direito à permanência em lugares de uso público. Nesse sistema, a exclusão é ainda mais perversa, pois inviabiliza até mesmo a mais precária alternativa para quem já está, muitas vezes, no limite da sobrevivência. A solução para o problema social passa a ser, na lógica da dupla-exclusão, impedir que os espaços públicos sejam ocupados por pessoas em situação de vulnerabilidade socioespacial. É preferível, no sistema da Arquitetura Hostil, que os lugares permaneçam inutilizáveis, vazios, sujos, úmidos, poluídos, escuros e sobretudo desocupados por cidadãos “indesejáveis”.

Mesmo havendo políticas públicas específicas reconhecidas para promover a reintegração social da população em situação de rua, por exemplo, a cidadania e direitos desses grupos deve ser respeitada e garantida pela sociedade como um todo.. Porém, o modo excludente e voraz com que o atual sistema econômico opera tende a trazer respostas hostis para questões que deveriam ser encaradas como problemas sociais da coletividade, e não de cidadãos específicos. Estes cidadãos são frequentemente invisibilizados e, muitas vezes, este tema só volta à tona quando a paisagem se torna também hostil: elementos pontiagudos em muretas, pedras em canteiros, cercas com lanças em chafarizes, bancos individualizados, espaços inclinados, com fechamentos verticais ou gradeados sob pontes e viadutos, entre outros.

O Rio de Janeiro sofre com 10% de déficit habitacional, São Paulo com 25% e o Brasil com 9%. No Brasil, o percentual da população que vive em condições precárias de habitação é de 30%, de acordo com a ONU. Além desse fator, questões como o valor das passagens do transporte público, a situação de extrema pobreza e vulnerabilidade social enfrentada por diversas famílias brasileiras (problema que foi exacerbado no contexto da pandemia), e a necessidade de se estar próximo aos centros urbanos acabam contribuindo para levar parte dos habitantes da cidade à situação de rua. Sua presença nas ruas, finalmente, não como causa, mas como consequência, influencia diretamente na ocupação de espaços públicos e em sua ressignificação a partir das necessidades mais básicas dessa população, apartada das funções precípuas desses espaços.

A reflexão reunida aqui é propositiva quando reivindica espaços públicos inclusivos, que contemplem portadores de restrições de acessibilidade de qualquer natureza a tais espaços, principalmente social e econômica, que é o foco desta nota. O IAB-RJ entende que agir de forma excludente apenas adia o problema, adotando uma postura negacionista em relação a problemas sócio-econômicos históricos do Brasil. Essa postura é contemporaneamente rechaçada pelos quatro pilares da sustentabilidade: as esferas ecológica, econômica, social e cultural É preciso projetar e construir de forma que as políticas públicas alcancem pessoas em situação vulnerável, para que todos os habitantes de nossas cidades sejam de fato alcançados por políticas que, por definição, deveriam atender a todos e todas.

É também objetivo desta nota sugerir que espaços públicos possam ser adotados por empresas e parcerias, como também possam incluir a população em situação de rua para manter estes próprios espaços, com capacitação apropriada, de forma a subsidiar parte de seus custos com moradias sociais, atuando como “zeladores públicos”. É, ainda, recomendar a instituição de programas sócio-culturais que aproximem estes espaços do uso público democrático, com funções adequadas tais como atividades artísticas, esportivas, feiras temáticas e subsídios para comércios e serviços de microempreendedores individuais.

Além disso, esta nota visa sugerir a arquitetas e arquitetos, engenheiras e engenheiros, e também a seus clientes, que defendam, em construções como berços de pontes, viadutos, passarelas e escadas urbanas, que a cidade seja dinâmica e que seus usos possam ser múltiplos, indo além da transposição rodoviária. É reconhecer que os investimentos públicos devem ir na direção de inclusão destes espaços, conformando-os em acordo com a paisagem em que se inserem, especialmente viabilizando transportes ativos, não-motorizados, com iluminação, limpeza e manejo de águas, convertendo-os exemplos de Arquitetura Inclusiva, ao invés de aplicar recursos públicos inócuos em ilusórios exemplares de Arquitetura Hostil, construídos para afastar o problema do testemunho público, e não para colaborar com sua solução. É, sobretudo, entender que a cidade não pode ser projetada para atender apenas a uma parcela da população e expulsar outra. A cidade não se “resolve” perpetuando a lógica da exclusão com novas, mais perversas e mais hostis exclusões.

Neste sentido, torna-se urgente uma visão amparada na alteridade urbana, como uma saída para a impessoalidade e a superação do egoísmo no espaço da cidade, na direção de uma responsabilidade pelo outro. Ao discutirmos a Arquitetura Hostil e seus reflexos na população em vulnerabilidade socioespacial, sobretudo a população em situação de rua, abrimos espaço para um resgate da valorização do humano, na qual “eu” e “outro” se tornam um acontecimento ético, que eleva e conduz na superação do eu, ou seja, na concepção de um espaço coletivo, plural e democrátco. Pensar a cidade a partir do outro exige uma humanidade na qual o lugar do outro seja mais importante do que o lugar do eu. Isso nos conduz para vivências transdisciplinares, tratando de forma dialógica todos os envolvidos no processo urbano.